terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Durante os meses de setembro a novembro do ano desse mesmo ano [2014] tive oportunidade de participar do Grupo de Diálogo Universidade Cárcere Comunidade (GDUCC), projeto de autoria do Professor Doutor Alvino de Sá, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Conheci tal grupo como atividade de extensão para os alunos da citada faculdade, entretanto, sua formação é aberta a todos os membros da comunidade. De modo bem genérico, consiste na formação preliminar de um grupo de indivíduos que vai até determinada penitenciária para se unir a um grupo detentos. Assim, forma-se o GDUCC, um grande grupo, que tem por objetivo uma troca de experiências entre pessoas que tiveram sua liberdade cerceada pelo Estado e pessoas que a possuem, através do diálogo.
No caso, tive a oportunidade de ir até a Penitenciária Feminina de Santana e fazer parte dessa experiência incrível. No final do grupo, pede-se um relatório de forma livre, como forma de fechamento. Pois bem, atrevo-me a postar publicamente o meu. Um escrito simples, sem métricas, nem rimas, nem formalidades.
 
Eu sou presa. Som do ferrolho. Abre a porta.
Sou Maria de Lourdes. Sou fé. Sou Rosangela. Sou fortaleza. Sou Débora. Sou valente. Sou Letícia. Sou privilegiada. Sou Vera. Sou firmeza. Sou Cotete. Sou apaixonada por minha filha. Sou Craudia. Sou a esperança de reconstruir a vida ao lado do meu marido. Sou Bruna. Sou a mistura da delicadeza com a timidez. Sou Ingrid. Sou beleza. Sou Cintia. Sou criatividade. Sou Amanda. Sou alegria. Sou Marileia. Sou experiência. Sou Valdenice. Sou coragem. Sou Marli. Sou olhos maravilhosos.
São mulheres. Não são seis dígitos. São mães. Não são solidão. São inspiração. Não são camisetas brancas e calças amarelas. São saudades. Não são cadáveres. São vaidosas. Não são lixo. São delicadas. Não são monstruosidades. São o futuro. Não são o passado. São únicas. Não são massa. São seres humanos. Não são irreversíveis. São a resistência. Não foram mortificadas.
Fecha a porta. Som do ferrolho. Não são presas.
A prisão está dentro da gente.
 
Esse escrito pode parecer sem sentido para quem o lê, mas tentarei explicar algumas chaves importantes. Quando fomos à visita técnica da penitenciária, antes de iniciar o grupo de diálogo, lembro-me muito bem do som que as fechaduras faziam. É medida de segurança sempre que uma porta estiver aberta, a outra deve estar fechada. Desse modo, quando inicio o texto, com “Eu sou presa. Som do ferrolho. Abre a porta”, a intenção é levar a pessoa comigo para dentro da prisão, para dentro do mundo de uma pessoa que não tem mais sua liberdade. Nessa “viagem”, começo nomeando as mulheres que conheci e indicando sua principal característica. A intenção foi mostrar o que mais pude ver dentro da penitenciária, que é o lado humano dessas mulheres. Tais características são muito marcantes e específicas de cada uma. A escolha pelo pronome “eu”, foi justamente por ser pessoal. Ou seja, a intenção é ressaltar a individualidade na descrição das pessoas que conheci. Em seguida, opto pela afirmação seguida da negação “Sou... não sou”, com o objetivo de questionar estereótipo da população carcerária. Por fim, ao sair da prisão, seguida do som do ferrolho, nego minha impressão pessoal “são presas”, afirmando que “não são presas”. A colocação de ambas constatações estão em ordem diversa, se você puder perceber, no começo, e no fim, [impressão pessoal x impressão final]. Meu maior aprendizado, como ser humano, foi que essas mulheres são a resistência da mortificação de Goffman, porque nutrem a liberdade dentro de si. Não são presas porque não se sentem presas. A prisão está dentro da gente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário